A memória no aparelho psíquico: das pulsões à linguagem


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Enigmas Freudianos: o problema da consciência e outros paradoxos

FREUD E A METAPSICOLOGIA II

A memória no aparelho psíquico: das pulsões à linguagem

 

Marcos Bulcão Nascimento (USP-Fapesp)[1]

(mbulcao@gmail.com.br)

Num artigo anterior[2], nós atacamos o problema da consciência e tentamos oferecer uma solução para o mesmo. Conforme mencionamos, o recurso ao instrumental conceitual presente no Projeto de 1895 revelou-se fundamental. Com efeito, é ali — a despeito da ‘dureza’ do vocabulário fisicista — onde o aparelho psíquico e suas relações energéticas possivelmente encontram sua versão mais ‘material’, mais concreta’.

Nesse artigo, nós seguiremos a mesma estratégia, a saber, valer-nos desse instrumental conceitual do ‘primeiro Freud’, de modo a tentar aprimorar nosso entendimento do aparelho psíquico.

* * *

Para Freud, o aparelho psíquico é antes de tudo um aparelho de memória, capaz de gravar as experiências para utilizá-las depois como guia de ação. Ora, acontece que a constituição deste aparelho se faz entre homens que constituem uma comunidade falante, o que vai ‘transformar’ este aparelho de memória num aparelho de linguagem.

Isto implica já duas coisas: (a) não há um aparelho de linguagem concebido isoladamente. Um aparelho de linguagem está sempre em relação com outros aparelhos e depende desta relação para se constituir; (b) o processo de aquisição da linguagem segue o processo normal de memorização, isto é, trata-se de um processo de ligação e associação que está na raiz da formação das palavras e da produção de significações.

Já dissemos que o registro da experiência de satisfação tem como resultado a formação de Bahnungen ou facilitações, as quais se apresentam como uma cadeia de percursos diferenciados ou privilegiados[3]. Isto quer dizer que a memória não é mais do que o conjunto destes trilhamentos, não é mais do que sua articulação. Examinemos em mais detalhe como estes trilhamentos se formam.

Inicialmente, devemos dizer que nem tudo o que é percebido é gravado pelo aparelho psíquico. Com efeito, não gravamos senão certos traços das impressões recebidas. A impressão, em si mesma, não constitui memória. São seus traços que serão registrados e depois organizados numa rede[4].

O traço é propriamente uma diferença entre as Bahnungen. Ele vai constituir-se pela elevação de barreiras de contato[5] resistentes ao livre escoamento da excitação, e sua formação dependerá fundamentalmente de dois fatores: (a) da intensidade da impressão; (b) da repetição. A intensidade da impressão será responsável pela formação das barreiras de contato, e a diferença entre elas dará lugar a um caminho preferencial. A repetição será o percurso mesmo desses trilhamentos favorecidos, os quais não são imutáveis, uma vez que de tempos em tempos os traços são submetidos a retranscrições.

A Carta 52

Na Carta 52, Freud comenta com Fliess sua hipótese de que nosso aparelho psíquico se teria estabelecido por um processo de estratificação sucessiva, pois “os materiais presentes sob forma de traços mnêmicos se encontram de tempos em tempos reordenados segundo as novas circunstâncias” (Freud, 1896, 153). “O que há de essencialmente novo na minha teoria é a idéia de que a memória é apresentada não uma só vez, mas muitas, e que ela se compõe de diversos tipos de signos” (Freud, 1896, 154).

Neste momento, Freud apresenta o seguinte esquema: em primeiro lugar, haveria as percepções (Wahrnehmungen), às quais a consciência se liga, mas que não conserva por elas mesmas nenhum traço do que se passou (já que percepção e memória se excluem). Estas percepções se fariam registrar, num primeiro tempo, enquanto Wahrnehmungszeichen (traços de percepção), inacessíveis à consciência e articulados segundo uma associação por simultaneidade. A partir daí, duas outras transcrições ainda ocorrerão:

(1) a transcrição relativa ao sistema inconsciente (Unbewusstsein), que será ordenada segundo um sentido causal, sugere Freud, e igualmente inacessível à consciência; e

(2) a retranscrição que se faz a um nível pré-consciente, mediante ou mediada por representações-palavra (Wortvorstellungen) (Freud, 1896, 154-5).

E isto nos conduz ao campo da linguagem propriamente dita.

 

O aparelho de linguagem

Até o momento, vimos que o homem é capaz de gravar os eventos que o atingem através da criação de grandes complexos associativos chamados Bahnungen. Ora, o que acontece é que, entre os múltiplos eventos que serão gravados pela criança, há a experiência do discurso do outro. Juntamente com o leite, o seio, o homem registra sons, sons de palavras, os quais ele vai terminar por associar a certos objetos devido a uma certa regularidade com a qual eles aparecem unidos.

A constituição do aparelho de linguagem se fará assim através de um processo de associação, o qual vai unir dois grandes complexos associativos: o complexo das associações de objeto e o complexo das associações de palavras.

As associações de palavra formam um complexo associativo (potencialmente) fechado, isto é, limitado em sua composição: imagem de leitura, de escrita, sonora, motora.

As associações de objeto, por sua vez, são um complexo essencialmente aberto, com suas cadeias sempre podendo ganhar novos ‘elementos’[6].

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O ponto-chave a notar é que da associação entre esses dois complexos associativos se formarão de um lado a representação-objeto (Objektvorstellung) e, do outro, a representação-palavra (Wortvorstellung)(Freud, 1987, 127).

O que se produz por esta ligação tem conseqüências nos dois sentidos: as associações-de-objeto vão adquirir unidade a partir de sua ligação com a representação-palavra, formando a representação-objeto; por sua vez, a representação-palavra obtém sentido através da sua ligação com a representação-objeto. O aparelho de linguagem é assim um aparelho que articula representações, e esta articulação tem um efeito de sentido.

Observemos, contudo, que o efeito de significação vai resultar não da relação entre a representação-palavra e a coisa externa ou mundo exterior ou o referente (ou entre este e a representação-objeto), mas da relação entre a representação-palavra e a representação-objeto.

Sim, porque é apenas a partir da representação-palavra que a representação-objeto pode obter unidade e desempenhar uma função de conceito. É a Wortvorstellung que ‘cria’ a Objektvorstellung (e não o objeto exterior)[7].

Isto fica claro desde o momento em que Freud faz a distinção entre a afasia assimbólica e a agnosia.

A agnosia é propriamente um problema de reconhecimento de objetos, isto é, uma impossibilidade de se valer da linguagem adequada uma vez que um eixo determinado da associação de objetos foi rompido.

A afasia assimbólica, de seu lado, diz respeito a um problema na relação entre a representação-palavra e a representação-objeto, relação que “me parece merecer mais a qualificação de “simbólica” do que aquela existente entre um objeto e uma representação-objeto” (Freud, 1987, 128). Além disso, uma página antes, Freud já havia dito que “a palavra adquire sua significação pela ligação com a ‘representação-objeto’” (Freud, 1987, 127). Quer dizer que Freud faz nitidamente a distinção entre o campo representativo (que contém as representações-palavra e as representações-objeto) e o terreno do objeto (o mundo exterior), e diz assim que a relação simbólica se estabelece no interior do campo representativo.

Para lançar um pouco mais de luz no assunto, é preciso lembrar que é somente a partir da representação-palavra que a representação-objeto pode ter unidade e desempenhar uma função de conceito. Deste modo, a representação-objeto não pode funcionar senão como índice do objeto exterior (jamais como sua cópia), e os atributos da coisa exterior serão então definidos no registro das representações, registro psíquico, sendo necessária obediência às suas próprias leis.

 

A Retranscrição Pré-consciente[8]

Nós já dispomos de elementos suficientes para examinar o que se passa ao nível da retranscrição pré-consciente. Nesta, o material mnêmico será ligado às representações-palavra e com isso ele ganhará possibilidade de acesso à consciência.

Mas qual é exatamente este material mnêmico ao qual as representações-palavra se vão associar? O registro das representações-palavra é o registro do PCs. Temos então duas pistas: a primeira diz que o registro mnêmico anterior é o registro do Inconsciente; a segunda diz que as palavras vão vincular-se às associações de objeto, resultando desta ligação uma unidade conceitual de objeto (Objektvorstellung). Parece então que não nos resta outra solução senão afirmar que o material mnêmico do Ics é composto por associações de objeto, restando para o registro do PCs a unidade conceitual das representações-objeto, assim como as representações-palavra que lhes são associadas.

Todavia, no seu artigo O Inconsciente, Freud vai dissecar os conceitos. Lá ele nos diz que o que era até então designado sob o termo de representação-objeto (Objektvorstellung) será decomposto em representação-palavra (Wortvorstellung) e representação-coisa (Sachvorstellung)(Freud, 1915, 116)[9]. Com isto, ele delimita o que ele entende ser a diferença entre uma representação consciente e uma inconsciente: “a representação consciente compreende a representação-coisa — mais a representação-palavra que lhe pertence — a representação inconsciente é a representação-coisa apenas” (Freud, 1915, 117; Freud, 1992, 151).

Isto nos conduz, entretanto, a uma dificuldade conceitual. É a Sachvorstellung sinônimo da Objektvorstellung, e então poderiam elas ser utilizadas indiferentemente uma no lugar da outra? Ou tratar-se-ia antes de conceitos diferentes? Tal distinção é de grande importância. Com efeito, as Objektvorstellungen, quando elas se referem a seu casamento com as Wortvorstellungen, podem naturalmente tornar-se conscientes. É propriamente o que identificamos conscientemente como objetos. De outro lado, as Sachvorstellungen, referidas ao sistema Ics, dificilmente poderiam ser ditas susceptíveis de se tornarem conscientes (pois a propriedade de tornar-se consciente é ligada aos conteúdos do PCs). Além disso, Freud havia-nos dito que as associações de objeto só obtinham unidade através da Wortvorstellung: como dizer agora que as Sachvorstellungen são da ordem do Ics se neste não há Wortvorstellungen para lhes darem unidade? O problema consiste então em definir de onde vem a possível unidade da representação-coisa (Sachvorstellung)[10], se o Ics não conta com a representação-palavra para fazê-lo.

Ainda que Freud não seja totalmente cristalino a este respeito, nós temos uma proposta de solução que pretende, ao mesmo tempo, respeitar a letra do texto freudiano e lhe dar um maior rigor conceitual.

Retomemos a Carta 52. Lá, Freud nos fala inicialmente de um primeiro registro dos Wahrnehmungszeichen (traços de percepção), cuja ‘regra’ de associação era simplesmente a simultaneidade. Estes Wahrnehmungszeichen, então, nós poderemos pensá-los como sendo as associações de objeto propriamente ditas, já que não há nada que as unifique além de sua ocorrência simultânea[11]. É o material mnêmico mais primitivo, não articulado em sistema, em Bahnungen. Após isto, haveria a transcrição inconsciente, quando este material, este conjunto descoordenado de traços, seria organizado, articulado, segundo uma ordem causal. Seria assim esta articulação causal que inauguraria propriamente o psiquismo, uma vez que antes não havia senão traços mnêmicos gravados uns após os outros, sem nenhuma relação especial ou duradoura entre eles. A unidade das representações inconscientes seria dada então, segundo nossa hipótese, por esta ligação causal.

É preciso, todavia, examinar de onde vem esta causalidade, de onde vem o princípio de organização destas representações inconscientes. Ora, para determinar isto, é absolutamente necessário não esquecer jamais as características principais do sistema inconsciente. Em outras palavras, nossa hipótese não seria válida se a causalidade de suas representações contradissesse o fato de que tais representações têm a relação a mais estreita com a formação do desejo. A teoria do desejo inconsciente é crucial na psicanálise, e, portanto, a causalidade de suas representações deve levar em conta esse fato. A questão então que se coloca agora é: de onde vem o desejo e como ele pode fazer-se representar nas inscrições e transcrições mnêmicas? A resposta se deixa já adivinhar, e não há mesmo outra: evidentemente, da experiência de satisfação primordial.

 

Retomada da experiência de satisfação (Befriedigungserlebnis)

Retomemos então nosso raciocínio a partir de outros conceitos. O organismo prematuro sofre de uma sensação corporal de dor, de tensão (SC1); ele grita (numa vã tentativa de se livrar da quantidade Q); uma outra pessoa (o Nebenmensch) vem em seu socorro e realiza para ele a ação específica, dando lugar em seguida à sensação corporal de satisfação (SC2). Esta seqüência de eventos é propriamente o primeiro objeto de registro mnêmico para o ser humano, e por isso a passagem de SC1 a SC2 não pode ser gravada pela criança senão enquanto Wahrnehmungszeichen[12]. Mas como é isto possível, se a passagem da primeira sensação corporal à segunda pareceria fazer referência antesa ordens distintas de eventos — que não poderiam, portanto, ser pura e simplesmente registradas segundo uma associação por simultaneidade — do quea um só evento? A razão é que o registro não é possível senão pelo surgimento das percepções que acarretam a satisfação, isto é, o que vai tornar possível a associação entre SC1 e SC2 são essas percepções de satisfação e, portanto, para a criança, não se trata senão de um e apenas um único evento. A prova disso é que, quando sobrevém de novo SC1, a criança passa imediatamente a SC2, alucinando a satisfação. O que equivale a dizer que não é senão num a posteriori que as duas sensações corporais poderão ser separadas, exatamente por intermédio das ligações que se interpõem entre elas. Neste momento, antes da intervenção das ligações, não há ainda registro Ics, não há ainda sistemas psíquicos distintos, e, no limite, não há ainda psiquismo.

O Outro e a entrada no Simbólico

É então no que se segue que tudo o que é especificamente humano vai fundar-se. Por ocasião das ajudas subseqüentes do Nebenmensch (do Outro[13]), o que era uma mera reação motora — o grito — vai transformar-se numa espécie de ação específica, a primeira e única do recém-nascido. O grito vai experimentar uma espécie de “mutação” e tornar-se apelo, isto é, vai adquirir uma função secundária de comunicação.

Ora, com isso, o sujeito humano entra agora no terreno das trocas propriamente simbólicas, o que implica que suas procuras de satisfação futura deverão daí em diante ser feitas no interior dessa ordem. Com efeito, após o fracasso da satisfação alucinatória, não resta à criança senão se fiar na satisfação trazida pelo Outro. Além disso, se nós queremos ser mais precisos no que concerne ao vocabulário conceitual utilizado, a criança não se torna sujeito senão através de sua inserção na rede simbólica. De fato, é quando o grito torna-se apelo, torna-se demanda, que a criança se torna um sujeito, o apelo sendo seu gesto primeiro e fundador. O apelo é uma demanda ao Outro, e sua resposta tem uma função de reconhecimento. A partir dessa troca primordial, seus destinos — da criança e do Outro — estarão intimamente imbricados.

A causalidade que concerne às representações inconscientes, as Sachvorstellungen, será assim atravessada pela influência do Outro, influência da ordem simbólica, representacional. Dito de outra forma, as representações-coisa — na medida em que elas não apenas articulam SC1 e SC2, mas também fixam as marcas, os signos deixados pelo Outro nos caminhos de satisfação — organizam-se desde já enquanto cadeia articulada.

O círculo fecha-se então. As representações-coisa inconscientes podem ser legitimamente chamadas de “representações” uma vez que elas obtêm sua “unidade” através da articulação causal inconsciente, isto é, através do desejo (o qual imbrica o Outro na experiência de satisfação). Deste modo, nós diremos que as representações-coisa são, sim, do registro do Ics. De sua parte, o registro do PCs conteria, efetivamente, numa certa medida, a representação-coisa mais a correspondente representação-palavra (já que seria esta a retranscrição pré-consciente — vínculo das representações-palavra ao material psíquico do Ics). Contudo, não seria senão com o vínculo às representações-palavra que as representações-coisa adquiririam uma unidade conceitual, esta inexistente no inconsciente. Ora, as representações-coisa com unidade conceitual são justamente as representações-objeto, as quais podem tornar-se conscientes pelo intermédio das palavras.

Tem-se, desde então, uma dupla vantagem nesta distinção entre Sachvorstellungen e Objektvorstellungen. A primeira é a delimitação de pertencimento das representações a sistemas distintos e, a partir daí, a segunda, a saber, a possibilidade de lhes vincular[14] diferentes propriedades.

Com efeito, como se sabe pelo exame dos sonhos, as representações inconscientes são muito mais maleáveis do que aquelas pré-conscientes. As primeiras têm grande facilidade para se condensar umas nas outras, para trocar elementos, enquanto que as representações pré-conscientes mantêm em geral sua estrutura, seu caráter invariante adquirido por intermédio da representação-palavra. É esta estrutura mais ou menos “formal” que nós chamamos “unidade conceitual”.

Rigorosamente, então, as representações-coisa, essencialmente inconscientes — após terem experimentado a retranscrição do PCs pelo vínculo às representações-palavra — dão lugar às representações-objeto, estas sendo dotadas de unidade conceitual e podendo tornar-se conscientes. Além disso, para uma última distinção, nós poderíamos acrescentar que o processo característico de descarga no nível inconsciente é o processo primário, isto é, as representações-coisa teriam por fim a descarga através da identidade de percepção[15]. Por sua vez, as representações-objeto, dotadas de uma unidade conceitual, podem ser ligadas um processo de pensamento judicativo e tentar proceder a uma descarga pela identidade de pensamento, processo secundário portanto.

Esta é nossa tentativa de solução, nossa hipótese de trabalho.

Pulsão e Psiquismo

Articulemos agora o exposto em termos de economia pulsional. Freud define a pulsão como um conceito limite, que articula o psíquico e o somático. Ela tem sua fonte no corpo, mas se faz representar no psiquismo, através das Vorstellungsrepräsentanzen.

Como isso pode ser compreendido? Se tomarmos como referência o Projeto, poderemos ver a pulsão como o que vai suceder as excitações endógenas (Qh) que estimulam y. Mas não basta identificar a pulsão à Qh. De fato, Qh é vista por Freud como uma estimulação de caráter endógeno, uma força constante, que, em si mesma, não é suficientemente forte para despertar a atenção psíquica. Seu efeito no psiquismo se faz por somação, isto é, somente após certo grau de excitação haverá uma tendência à descarga, uma urgência que é (suscetível de ser) liberada pela via motora (Freud, 1895, 315-6). É apenas então que esta quantidade de excitação é capturada pelo psiquismo.

Neste momento, podemos já estabelecer uma leve diferença entre pulsão e Qh. A pulsão, vimos, é um conceito limite que articula o psíquico e o somático. A pulsão não é uma estimulação psíquica. Ela é, antes de tudo, uma estimulação para o psíquico. Alguma coisa que, do exterior, faz uma exigência de trabalho ao psiquismo. Isto quer dizer que o que é da ordem do psiquismo é não a pulsão, esta considerada em si mesma, mas o que se deverá constituir como seus representantes.

Contudo, Qh faz irrupção efetiva no psiquismo, Qh é uma carga que circula também no interior do sistema y. A pulsão, assim, não poderia ser identificada à Qh a menos que se possa diferenciar a Qh em seus aspectos de existência no interior e no exterior do psiquismo. E isto precisamente pode ser feito através do já quase onipresente conceito de ligação, conforme tivemos oportunidade de ver no capítulo anterior.

De fato, ali dissemos: o psiquismo é inaugurado com a ligação de Q, querendo dizer com isso que é fundamentalmente a ligação de Q que diferencia, que marca a transformação da energia somática em energia psíquica. Será essa diferença, portanto, que nos permitirá alcançar uma definição precisa da pulsão em termos de Q livre e Q ligada.

* * *

Senão vejamos.

Recontemos a mesma história, agora incluindo a pulsão como um de seus personagens, bem como as depurações conceituais feitas acima.

A Qή, livre, é capturada (ligada) numa trama neuronal (as Bahnungen), uma rede de caminhos diferenciais que se revelará fundamentalmente uma trama representativa — inicialmente composta de representações-coisa (registro do Ics), e em seguida de representações-objeto e de representações-palavra (registro do PCs).

Ora, se então nós identificamos esta Qή livre ao disperso pulsional, parece que todos os segredos da definição acima nos são revelados.

De fato, a pulsão tem sua origem no corpo (estimulação endógena – Qή livre) e se faz representar no psiquismo através de representações energeticamente investidas: os Vorstellungsrepräsentanzen[16], que, organizados em rede, constituem o território da Q ligada, território psíquico propriamente dito[17].

Esta quantidade de excitação que faz irrupção no psiquismo gera um impulso, uma pressão à descarga, a qual tentará ser levada a cabo via ação motora, ação específica. Será, portanto, a partir dessa rede de representações que se orientará a procura futura de satisfação: tenta-se repetir a experiência de satisfação originária percorrendo essa rede de caminhos diferenciados, essa rede articulada de traços mnêmicos[18].

Entretanto, fato crucial, entre o que se procura repetir e o que efetivamente se consegue, há um hiato, uma distância insuperável, distância essa que vai determinar duas das características pulsionais mais marcantes:

(a) uma exigência permanente de trabalho ao psiquismo;

(b) a variabilidade de seus objetos de satisfação[19].

Das Ding: um furo real no aparelho psíquico

Mas por que é necessária a existência de um ‘hiato’ ou de uma defasagem entre o objeto procurado e o objeto encontrado? Uma vez mais, o recurso ao Projeto nos é de grande valia. Lá, Freud nos diz que a primeira apreensão da realidade pelo sujeito é o Nebenmensch, o complexo do próximo. Com efeito, é o Nebenmensch que toma a seu encargo a tarefa de suprir as necessidades do recém-nascido, e portanto suas primeiras percepções o incluem necessariamente. Este complexo do próximo, o sujeito vai dividi-lo em duas partes: uma delas é inassimilável e se impõe por sua constância (das Ding); enquanto a outra é variável e pode ser conhecida pelo sujeito (pelo eu)[20].

Mais especificamente — e utilizando o vocabulário fisicista do Projeto para nos ajudar neste primeiro momento —, estas duas partes são o neurônio a e o neurônio b. O primeiro pertence a y núcleo, e o segundo a y pallium. Esta indicação é importante, pois ela já indica por que o neurônio a é inassimilável, incognoscível, enquanto que o neurônio b pode ser conhecido, pode ser objeto de atribuição e comparação. De fato, o y pallium é a parte do sistema y onde se vão formar as representações-palavra e, talvez por sua proximidade a f, onde se vão associar as quantidades vindas da percepção. Ou seja, o que permite um conhecimento do neurônio b é seu vínculo às qualidades que podem ser articuladas na rede significante. Do outro lado, o y núcleo é o sistema que recebe os estímulos endógenos, que recebe diretamente a pressão pulsional. É ele que tem a relação mais estreita com o que se chamam sensações corporais.  

Isto dito, nós podemos retornar a um vocabulário menos “fisiológico”, “fisicista”. A importância desta breve referência ao Projeto, contudo, está no sentido de indicar onde reside a irredutibilidade de das Ding, sua impossibilidade de ser assimilada pelo psiquismo e de ser propriamente conhecida. Ora, as conseqüências ou indicações que podemos tirar do parágrafo acima é que das Ding deve ser situada no eixo das sensações corporais (SC1-SC2), o qual não pertence, estritamente falando, ao território psíquico.

Das Ding deve então ser vista como o registro mnêmico da satisfação ela mesma, traço inassimilável porque não articulado em rede. De outro lado, a outra parte do complexo do próximo situa-se no eixo psíquico, eixo simbólico, ou seja, no eixo das representações qualitativas da experiência. Assim, é somente através dos traços mnêmicos das qualidades das percepções que esta memória real de satisfação pode ser associada às outras representações e tornar-se integrada, num certo sentido, ao circuito simbólico.

Em outros termos: as qualidades das percepções vão associar-se à sensação corporal de satisfação e vão dar lugar às representações-coisa inconscientes. Estas, de seu lado, vão fornecer o material primário para os futuros juízos de atribuição, já que a retranscrição pré-consciente se opera precisamente sobre essas representações inconscientes. E, desde que as representações-palavra são vinculadas a este material, o sujeito pode delas ter consciência.

De outra parte, há das Ding, que é a parte da experiência de satisfação que permanece isolada para o sujeito. Das Ding é, assim, o traço ‘bruto’, não lapidado da experiência do Nebenmensch, e por isto ela resta sempre “como sendo por sua natureza, estranha (Fremde)” (Lacan, 1978 64-5). É neste sentido que das Ding pode ser dita a coisa mais íntima e próxima do sujeito e, ao mesmo tempo, a mais misteriosa e desconhecida. De fato, enquanto ligada à experiência de satisfação fundamental, ela é íntima ao sujeito; enquanto irredutível à articulação significante, ela está fora do psiquismo, fora do simbólico e portanto é incognoscível[21].

Das Ding é assim uma espécie de “furo” no interior do aparelho psíquico, furo em torno do qual todas as representações, todas as Vorstellungen, de um modo ou de outro, gravitam. O sujeito tenta encontrar das Ding, mas ele não encontrará senão die Sache, die Sachvorstellungen[22].

 

Pulsão e Consciência

Temos de lidar com um problema imprevisto.

Com efeito, acima fizemos o que nos pareceu uma promissora distinção entre Qh livre e Qh ligada. Ali, identificamos a Q[23] livre com a pulsão e a Q ligada com o território da memória, território psíquico propriamente dito. Ora, antes havíamos trabalhado também com a noção de Q livre, mas desta vez associada ao conceito de atenção psíquica.

Freud nos ensina que é o interior do corpo a fonte das excitações endógenas, é ele a fonte das pulsões. Ele também nos ensina que a pulsão se faz representar no psiquismo por representantes, um deles de caráter propriamente intensivo, quantitativo (o afeto), o outro de caráter qualitativo (a representação)[24]. É através desses dois representantes que o sujeito toma conhecimento das exigências pulsionais e tenta satisfazê-las, na medida de suas possibilidades.

Assim, o que ocorre é que parte dessa Q, livre [pulsional], que faz exigência de trabalho ao psiquismo, é ligada numa complexa rede de trilhamentos, criando deste modo uma série de caminhos facilitados, o que se chama caminhos de satisfação da pulsão. Toda ampliação posterior dessas Bahnungen será feita ao redor desses caminhos primordiais de descarga. Ao sujeito, não lhe é dada a possibilidade de modificá-las (nem ele saberia como), mas apenas de criar diferentes maneiras de percorrê-las. Esta multiplicação (nos modos de satisfação das pulsões) resulta tanto da ampliação material das Bahnungen quanto dos remanejamentos sucessivos que elas sofrem[25].

Esse pequeno desvio nos serviu para indicar que, entre a Q livre identificada com as pulsões e a Q livre identificada com a atenção psíquica, há um longo caminho a percorrer. Com efeito, tão logo a Q (livre) de fonte (diretamente) pulsional ultrapassa certo limite, ela faz irrupção no psiquismo e se vê sujeita a seguir trilhamentos já formados. Ela faz sua aparição em y núcleo, percorrendo inicialmente a Bahnung criada pela sensação corporal que lhe corresponde, e em seguida suas derivações, associadas às qualidades produzidas pelas percepções que proporcionaram anteriormente sua satisfação. É apenas então que a energia de proveniência pulsional entra no y pallium e pode ser cooptada para investir neurônios excitados pelos períodos vindos de j. Por conseqüência, a Q que se supunha absolutamente livre do mecanismo da atenção já havia sido capturada, longo tempo antes, pela trama representativa, com a criação de expectativas mais ou menos bem definidas. A atenção é então a Q livre, mas já condicionada por esses estados diversos de desejo e já cooptada pelo eu, que aprendeu a dirigi-la (a atenção) para as qualidades vindas de j. Em outras palavras, o que se tinha chamado de “Q livre”, e tinha sido identificado com a atenção psíquica, seria mais proveitosamente chamado de “Q móvel”.

O paradoxo parece então dissolver-se mediante esta pequena alteração semântica.

Mas que não se pense, todavia, que nós, de algum modo, “forjamos” a existência desse paradoxo para apenas resolvê-lo em seguida, senão que o próprio Freud se refere tanto à energia endógena, pulsional, quanto à energia da atenção como sendo energia livre[26]. Além disso, fácil quanto pareça tal solução, ela tem o mérito de apontar para o fato de que há um parentesco talvez muito maior (no sentido de mais direto) dos processos conscientes em relação às exigências pulsionais do que se poderia suspeitar. E essa pequena distinção serviu para colocá-lo em evidência. Realmente, é apenas após ter sido feita essa distinção cuidadosa que se pode afirmar sem medo que a consciência é, e em que sentido, um verdadeiro derivado da pulsão.

* * *

Com esse artigo, nós completamos, por assim dizer, o retorno ao “primeiro Freud”, de modo a extrair algumas importantes conseqüências da reformulação conceitual proposta.

No próximo artigo, nós tentaremos dar um passo além, qual seja, “traduzir” a solução proposta para o vocabulário contemporâneo e com isso mostrar que tal solução não precisa ficar “datada” ou restrita ao esquema conceitual tão peculiar ao primeiro Freud.

REFERÊNCIAS

Bulcão Nascimento, M. (2007) A Constituição da Realidade no Sujeito: Psiquismo, Real e Epistemologia, Salvador: Edufba.

Freud, S. (1892-1899), Extracts from the Fliess papers. Standard Edition, 1: 173-280.

Freud, S. (1895), Project for a scientific psychology. Standard Edition, 1: 295-387. London: Hogarth Press, 1964.

Freud, S. (1896), Lettre 52, in: La Naissance de la Psychanalyse, Paris: P.U.F., 1991.

Freud, S. (1915), The unconscious. Standard Edition, 14: 166-204. London: Hogarth Press, 1957.

Freud, S. (1987), Contribution à la Conception des Aphasies, une étude critique. Paris: P.U.F..

Freud, S. (1992), “Das Unbewusste”, in: Metapsychologische Schriften, Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag.

Freud, S. (1995), Projeto de uma Psicologia Científica, (tradução direta do alemão e notas críticas de Osmyr Faria Gabbi Jr.), Rio de Janeiro: Imago Ed.

Lacan, J. (1986), Le Séminaire, livre II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, Paris: Seuil.

Lacan, J. (1978), Le Séminaire, livre VII, L’éthique de la psychanalyse, Paris: Seuil.

Wine, N. Pulsão e Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.

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marcos bulcão nascimento é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo-USP (2005), com doutorado sanduíche pela University of South Carolina (E.U.A.: 2003-04). Graduou-se em Filosofia também pela USP (1995), tendo feito seu mestrado em Teoria Psicanalítica na Université de Paris VIII (França: 1998).

Tem ainda pós-doutoramento pela UFBA (Prodoc-Capes, 2006-07), onde também lecionou, e pela USP (Fapesp, 2008-11), com estágio de pesquisa na University of London — Birkbeck College (Inglaterra: 2009).

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FREUD E A METAPSICOLOGIA II

A memória no aparelho psíquico: das pulsões à linguagem

 

RESUMO: Nesse trabalho — o segundo de uma série de quatro artigos sobre Freud e a metapsicologia —, nós tentaremos esmiuçar as propriedades do aparelho psíquico, tal como concebido por Freud, explorando desta vez a importância do par memória/linguagem na economia psíquica-pulsional do sujeito.

 

PALAVRAS-CHAVE: memória; linguagem; pulsões; representações; sistemas psíquicos

FREUD AND METAPSYCHOLOGY II

The memory in the psychical apparatus: from the drives to language

 

ABSTRACT: In this article — the second of four papers on Freud and his metapsychology —, we will continue to scrutinize the psychical apparatus’ properties, this time exploring the role the duo memory/language plays in the subject’s psychical economy.

 

KEY-WORDS: memory; language; drives; representations; psychical systems


[1] Essa série de artigos é fruto da pesquisa desenvolvida durante meu pós-doutoramento junto à Universidade de São Paulo e financiado pela Fapesp.

[2] Freud e a Metapsicologia I – O problema da consciência: solução.

[3] Percorre-se preferencialmente o trilhamento ligado à satisfação ou descarga.

[4] “As impressões em si mesmas são inarticuladas. (…) Quando elas são ligadas, as impressões entram na ordem das representações significantes” (cf. Wine, N.Pulsão e Inconsciente, 1992, p. 126).

[5] Kontaktschranke, segundo a terminologia empregada no Projeto. No resto de sua obra, Freud não utilizará mais a noção de barreiras de contato. Contudo, o que é importante frisar é o aspecto de retenção de energia, de quantidade. Isto perdurará na obra de Freud sob a noção de inscrição. Ou seja, a retenção de Q torna-se a retenção de traços de impressões ou traços de percepções. O vocabulário quantitativo dá lugar a um vocabulário “semântico”, e mesmo significante. Esta mudança, como nós já o indicamos, pode já ser notada no Projeto, onde a abordagem da quantidade cede lugar à abordagem das representações. O que nós fazemos aqui é mostrar não  apenas que o aspecto quantitativo não é antinômico ao aspecto representativo, semântico, mas também que ele serve ainda a esclarecer certas relações entre este aspecto semântico, significante, e o aspecto pulsional, como se verá em seguida.

[6] Com efeito, se é verdade, de um lado, que as imagens sonoras podem ganhar infinitas variantes em termos de pronúncia ou sotaque, podemos perceber, de outro, que tais variantes não alteram seu núcleo fundamental, isto é, o significado (cf. infra). O mesmo valendo para as variantes de escrita e leitura.

O mesmo não se dá, porém, com as associações de objeto. Com efeito, formadas como são de imagens visuais, táteis, acústicas e cinestésicas, não há nada a princípio que restrinja o tamanho de tais cadeias associativas.

Salvo honrosas exceções — caso de Helen Keller, por exemplo — o complexo das associações de palavra é ligado àquele das associações de objetos apenas por sua imagem sonora, sugere Freud. Por sua vez, é a imagem visual que ganha proeminência no caso do complexo das associações de objeto. (cf. Freud, 1915, p. 214).

[7] A idéia de que a representação-palavra cria (ou precede logicamente) a representação-objeto parece-nos pertinente ao contexto da obra freudiana e não precisa necessariamente ficar vinculada a García-Roza, também seu proponente. De fato, ela encontra justificativa e suporte na nossa própria leitura do texto freudiano, em que é proposta uma distinção mais fina (inexistente em García-Roza) entre representação-coisa e representação-objeto e se mostra que as representações-coisa (fundamentalmente inconscientes) dão lugar às representações-objeto apenas ao sofrerem a retranscrição pré-consciente (o que ocorre mediante associação do material mnêmico anterior às representações-palavra). Dito de outro modo, pode-se dizer que a representação-palavra “cria” a representação-objeto no sentido preciso de que é apenas após a aquisição da linguagem que a mesma pode surgir e fazer irrupção na consciência.

[8] Cf. Bulcão Nascimento, M. (2007) A Constituição da Realidade no Sujeito: Psiquismo, Real e Epistemologia, Salvador: Edufba, onde essa questão foi primeiramente desenvolvida.

[9] Cf. também “Das Unbewubte”, in: Metapsychologische Schriften, Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1992, p.151.

[10] De fato, já que falar de representações implica supor algo como uma unidade. Um complexo associativo em si mesmo não poderia ser dito uma representação a menos que exista um princípio de unificação que faça com que as associações de que ele se compõe perdurem, num certo sentido, juntas. A representação-palavra, na medida em que ela é uma espécie de invariante lógico, pode assumir tal função de princípio de unificação. Resta-nos a descobrir o que pode desempenhar esse papel no caso das representações inconscientes.

[11] Mais precisamente: as Wahrnehmungszeichen são os traços das percepções, isto é, os elementos que serão reunidos numa complexo associativo pela simultaneidade da ocorrência. Ou ainda: as associações de objeto são as Wahrnehmungszeichen enquanto reunidas por sua ocorrência simultânea.

[12] Como nós o vimos, esses traços de percepção formam o primeiro registro mnêmico, organizado segundo a associação por simultaneidade.

[13] Entendemos que também aqui um conceito lacaniano pode ser tomado de empréstimo, sem nenhum prejuízo ao arcabouço conceitual freudiano.

[14] E, naturalmente, justificar a origem de tais diferenças.

[15] Dito de outro modo, haveria no inconsciente uma tendência à satisfação alucinatória do desejo, tal como ela acontece no sonho. Todavia, mesmo esta tendência se distingue já em vários aspectos da alucinação primitiva da satisfação originária, porque a tendência alucinatória do inconsciente passa pela influência do desejo, e este pela trama simbólica.

[16] Os Vorstellungensrepräsentanzen têm um elemento representativo propriamente dito (Vorstellung); e um intensivo (o afeto — Affekt). Em relação a isto, nós podemos sublinhar o fato de que, apesar do fato de que eles fazem conjuntamente sua aparição no psiquismo, eles podem eventualmente destacar-se um do outro.

[17] É importante destacar o fato de que o conceito de pulsão vem marcar uma diferença qualitativa entre o psíquico e o não psíquico. Com efeito, não basta dizer que a energia de fonte endógena foi capturada pelo psiquismo. Tal energia é não apenas capturada, mas, de certa maneira, transformada. O que era apenas quantidade, intensidade, torna-se representação, torna-se linguagem. O destino da pulsão é, poder-se-ia dizer, transformar-se em linguagem.

[18] Traços eventualmente remanejados pelas retranscrições do material registrado

[19] Freud examina atentamente o conceito de pulsão em seu artigo “Pulsões e suas Vicissitudes”, de 1915. É preciso notar, contudo, que já em 1896 (após Afasias, Projeto e a Carta 52) todas as bases para a teoria da variabilidade do objeto pulsional já estão estabelecidas. De fato, ali nós podemos ler que: (1) a experiência de satisfação originária orienta todo o processo de busca de satisfação futura e que esta não pode ser assimilada no psiquismo enquanto impressão, mas apenas mediante seus traços; (2) estes traços, longe de serem cópias das impressões ou do mundo exterior – ou mesmo cópias dos elementos sensoriais percebidos – são, antes de tudo, meros índices daquelas; (3) tais traços se organizam através de uma grande rede de representações (representações-objeto e representações-palavra), a qual instaura um registro simbólico que – pelo fato do efeito de significação ser interior ao campo representativo – há uma certa autonomia em relação ao mundo exterior. Ora, daí a concluir que a apropriação simbólica dos traços mnêmicos multiplica as possibilidades de satisfação é simplesmente um passo a mais.

[20] “Assim, o complexo do Nebenmensch se separa em duas partes, uma das quais se impõe por um aparato constante que permanece unido como coisa — como Ding”. Cf. Lacan, 1978Lacan, Le Séminaire, livre VII, p. 64 (L’Éthique)e também, Freud, 1995, 80-81;.

[21] O termo criado por Lacan que dá conta dessa “duplicidade” de das Ding é o de extimo (ex-time), quer dizer, das Ding está ao mesmo tempo dentro e fora do aparelho psíquico. “Pois das Ding está justamente no centro no sentido de que ela está excluída. Ou seja, na realidade ela deve ser posta como exterior” (L’ÉthiqueLacan, J. Le Séminaire, livre VII, p. 87). Ela está dentro do aparelho psíquico na medida em que ela é registro mnêmico da experiência de satisfação; ela está fora, excluída do aparelho psíquico na medida em que ela é inassimilável à rede significante. É esse o sentido de “extimo”: um furo real na organização simbólica do aparelho psíquico.

[22] Bem como as Objektvorstellungen e Wortvorstellungen.

[23] Lembramos que, desde que toda Q provém de fonte endógena (cf. supra), podemos escrever simplesmente Q.

[24] Die Vorstellung. Não parece haver nenhum problema na afirmação de que a representação tem um caráter qualitativo, já que ela é precisamente criada em torno de imagens sensoriais.

[25] Notadamente aqueles derivados da retranscrição pré-consciente, uma vez que, a partir do mesmo, o indivíduo adquire instrumentos (as representações-palavra, por exemplo) poderosos para explorar os caminhos facilitados com uma grande economia energética. O pensamento é uma ação sem motricidade.

[26] É certo que, no caso da atenção, Freud diz “energia psíquica livre”, isto é, ele explicita o caráter psíquico da Qh livre da atenção, o que nós justamente corroboramos com nossa distinção. Com efeito, nós não fizemos mais do que estabelecer que a atenção é, propriamente falando, uma energia psíquica, capturada e modificada em seu percurso, enquanto a pulsão é uma energia para o psiquismo, isto é, uma energia que, de fora, exige trabalho do psiquismo.

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