O FILÓSOFO PEREGRINO – ANTES DO COMEÇO


O FILÓSOFO PEREGRINO – ANTES DO COMEÇO

NO AVIÃO PARA LONDRES

What is life worth if it doesn’t give you trees to lift the soul, a road to lead the imagination on, and a few agonising blisters along the way? 
DAVID JORDAN

Eu me lembro agora de Virginia Woolf, após um esforço atroz, semanas de trabalho em vão, dúzias de páginas arrancadas do Virginia Woolfcaderno, dizendo a seu marido que ela finalmente tinha a primeira sentença de seu livro. Eis a grande proeza! Como se todo o livro estivesse contido naquela primeira sentença, como se a parede entre as palavras e o escritor tivesse ruído e a ele não restasse senão exibi-las, uma após as outras.

Duas coisas vieram à minha mente após essa cena. Uma é a notória dificuldade de começar um livro (pelo menos um livro que não resulte numa tese de filosofia). Uma dificuldade que pode ter a ver com o fato de muitas outras linhas — o que significa muitas outras histórias — poderem realizar a mesma função. Daí a responsabilidade. Se estas primeiras linhas, uma história. Se aquelas, outra história. Como decidir? O que torna uma história melhor do que outra ou, pelo menos, o que a faz merecer ser contada antes da outra?

Esta poderia parecer uma pergunta trivial para a maioria das pessoas, ou até mesmo sem sentido, mas para mim ela é crucial em mais de um aspecto. Porque na verdade ela é como um espelho de outro conjunto de questões. Como escolher entre diferentes estilos de vida, profissões, carreiras, objetivos? Deveríamos ser mais aventureiros, nômades, solteiros, viver um dia de cada vez? Ou, talvez, “ratos de biblioteca”, cientistas de carreira, com esposa e crianças, casa e propriedades? Ou ainda qualquer uma das múltiplas combinações entre essas duas ou ainda outras séries de possibilidades?

Estas questões também poderiam ser vistas como triviais ou tolas, ou quem sabe apropriadas no contexto de um adolescente inexperiente. Entretanto, estou longe de ser um adolescente e estas questões são ainda absolutamente cruciais para mim. Elas são mesmo as questões que precisam ser respondidas. Apesar disso, eu mesmo sinto que tais respostas são mais como o Santo Graal: desesperadamente desejadas, mas em essência inatingíveis porque irreais, puro mito.
Respondível ou não, porém, esse conjunto de questões, ou suas tentativas de respostas, tem muito a ver com a escolha da primeira sentença de um livro. Sua escolha determina ou pelo menos influencia profundamente a sequência das próximas, e Thelma_Louise_cliff-1assim por diante, algumas vezes de tal modo que somos apenas arrastados pelos acontecimentos seguintes, desafiando inteiramente nossa própria capacidade de prever ou antecipar o futuro. Me vem à mente o já clássico Thelma & Louise, filme em que algumas decisões e acontecimentos pontuais acabam selando o (fatal) destino das duas protagonistas…

Em outras palavras, muitas vezes tomamos certas decisões, fazemos certas escolhas — as “sentenças” de nossas histórias —, mas não temos noção de como elas podem afetar todo o curso de nossas vidas.

Muitas vezes as possibilidades que se apresentam diante de nós parecem igualmente boas naquele momento, então decidimos, despreocupados, por aquele caminho em vez daquele outro. Mas o que frequentemente esquecemos é que esses caminhos alternativos não seguem necessariamente “rotas paralelas” ou próximas, e dificilmente haverá um “outro dia” para voltar e percorrer aquele caminho — “contar aquela história” — que se deixou para trás…

003_Two_roads

Two roads…

[…] And both that morning equally lay, in leaves no feet had trodden black.

Oh, I kept the first for another day!


Yet knowing how way leads on to way, I doubted if I should ever come back… *

 

O ponto é que, se o escritor tem sempre a possibilidade de escrever outro livro — o que pode lhe trazer algum alívio —, nós não contamos com outra vida: tudo o que temos está à nossa frente, aqui e agora.

Como então agir, decidir? Porque a verdade é que eu não quero abrir mão de nenhuma das possibilidades!

Quero a vida do aventureiro, daquele que viaja para todos os lugares possíveis e encontra e conhece todos os tipos de pessoas, mas não menos a vida de um filósofo “borgesiano”*, em que minha biblioteca é o meu mundo e nenhuma experiência existe ou deixa de existir fora de um livro, lido ou escrito.

Quero a vida estável, com mulher e filhos, um trabalho, uma carreira, um papel marcante e reconhecido na sociedade, mas não menos uma vida nômade, com liberdade para ir aonde quiser e no momento em que a sede de novidade sobrevier, sem necessidade de justificar meus atos ou mudanças, de humor ou cidade, país ou profissão, porque eu estaria tão próximo do anonimato quanto possível.

Dessas linhas já se depreende o tamanho do meu problema. Quer dizer, alguns dirão que não há problema algum. “Cresça”, eis a resposta para seu “enigma insolúvel”! Mas para alguém que entende que os “adultos” não estão em melhor posição, isso não resolve nada… Prefiro as minhas questões. Elas podem ser insolúveis, admito, mas o que se atinge ao tentar respondê-las…

Como se pode adivinhar disso tudo, fiz a única coisa que uma mente curiosa poderia ter feito: tentar. Tentar viver e conhecer tudo, não fechar as portas a nada, a nenhuma oportunidade, a nenhuma nova experiência.

Assim, viajei tanto quanto pude, fiz turismo “de luxo” e “mochilei”, mas também tive minha parte de assentamento, mochilando2principalmente na graduação e doutorado. Sou “rato de biblioteca” e adepto de musculação. Posso passar dias apenas na companhia de livros, mas também sou fã e praticante amador de vários esportes. Atravessei a Espanha a pé e planejo agora andar de Londres a Roma. Sim, sou filósofo. E também andarilho.

Mas, tão interessante quanto minha vida possa parecer — e até acho que é —, não se pode esquecer dos preços que se paga por isso. Sim, porque, se é verdade que ganhei algum reconhecimento como pesquisador, não é menos verdade que eu poderia ter feito muito melhor, publicado bem mais se tivesse dedicado mais tempo e energia a isso.

De outro lado, tivesse me dedicado inteiramente a uma vida de aventura, eu poderia ter ganho alguma notoriedade pelas minhas viagens, escrito livros e quem sabe transformado isso no meu ganha-pão.

Claro, eu sei: ninguém pode ter tudo. Sobretudo ninguém pode ser amador em tudo que faz e querer ter o reconhecimento de um profissional dedicado à carreira. Esse é, no fim das contas, o meu problema, o meu dilema. Eu quero amar o que faço, todo o tempo, e, para isso, quero poder interromper e trocar de atividade quando bem quiser. E, se é verdade que gostaria de ganhar dinheiro com cada uma dessas atividades, não quero ganhar nada por obrigação, por “encomenda”. Quero desejar, decidir, planejar e fazer. E depois, se puder, ser pago por isso. Será pedir demais, ou só estou reclamando o que cada um deveria ter por direito?

A segunda coisa que me veio à cabeça… Não me lembro…

Mas de repente me ocorre que essas reflexões bem podem servir como as primeiras sentenças do livro que planejo escrever sobre essa aventura que está prestes a começar… (sem a pretensão da qualidade woolfiana, claro).

Sim, de certa forma, a própria Via Francígena não deixa de ser isso, uma espécie de pretexto para eu escrever sobre uma experiência cuja intensidade possivelmente me levará a conhecer meus limites de um modo sem precedentes.

Essa é a perfeição de um desafio como esse, um desafio ao mesmo tempo físico e mental. A própria mente, exigida e exaurida pelo esforço físico, se vê diante da necessidade de se renovar e reinventar. E esse é o propósito dessa jornada através da Europa, o grande objetivo dessa aventura: criar as condições a partir das quais eu possa — ou melhor, tenha de — reinventar a mim mesmo.

Neste momento, eu paro e penso. Quanta pretensão em todas estas linhas! Estarei já delirando, sonhando acordado, escrevendo quando deveria estar dormindo? De todo modo, serviu pra “quebrar o gelo”. O “fardo” das primeiras linhas, da primeira página, passou. A Via Francígena já pode começar.

Criar uma vida que reflete seus valores e satisfaz sua alma é um feito raro. Numa cultura que promove avareza e excesso como a vida ideal, uma pessoa feliz desenvolvendo seu 
próprio trabalho é usualmente considerada excêntrica, se não subversiva. Ambição é 
apenas entendida como ascensão ao topo de alguma escada imaginária de sucesso (...), como se profissão e salário fossem a única medida do valor humano. (...) Inventar o sentido 
de sua própria vida não é fácil, mas ainda é permitido, e eu acho que você será 
mais feliz se se der o trabalho de tentar.calvin hobbes
***
                           Bill Watterson

____________________________________________

 

 

 

*“The Road Not Taken”, poema de Robert Frost, imortal especialmente por suas últimas linhas: “Two roads diverged in a wood and I — / I took the one less travelled by, / And that has made all the difference”.

**Referência ao escritor argentino Jorge Luis Borges e seu conto “A biblioteca de Babel”. Nessa biblioteca, imagina Borges, estão contidos todos os livros possíveis, relatando e retratando qualquer combinação possível de letras, palavras ou histórias.

*Watterson, Bill (1995). Calvin and Hobbes Tenth Anniversary Book. Andrews and McMeel (trecho de “Some Thoughts On The Real World By One Who Glimpsed It And Fled”, Kenyon College Commencement, 20 de maio de 1990).

________________________________________________________________

O FILÓSOFO PEREGRINO – Marcos Bulcão – 376 páginas – Editora Record

Quatro países, 77 cidades, 86 dias e 2.065 quilômetros percorridos… a pé. Esse foi o desafio a que o filósofo Marcos Bulcão se
propôs quando decidiu percorrer sozinho a Via Francígena, uma rota de peregrinação europeia até hoje pouco conhecida e VF_capaexplorada, que liga Canterbury, na Inglaterra, a Roma, na Itália, atravessando ainda a França e os Alpes suíços.

Os números impressionantes expressam, de forma objetiva, a grandeza da viagem narrada neste livro. Filósofo por formação e, o que poderia parecer paradoxal, ao mesmo tempo apaixonado por esportes (incluindo os radicais), Marcos Bulcão buscava, após a conclusão do doutorado em filosofia, empreender uma grande caminhada aos moldes do Caminho de Santiago de Compostela, que realizara anos antes.

O filósofo peregrino é o resultado final deste incrível projeto. Ilustrado com muitos mapas e belíssimas fotografias das regiões visitadas, traz ainda dicas sobre a preparação física e logística, sobre o investimento financeiro e os equipamentos necessários à viagem. Com uma narrativa saborosa, repleta de curiosidades históricas e culturais, esta obra nos deleita com os relatos de um peregrino interessado em testar seus limites a fim de conhecer o mundo, as pessoas e suas histórias; de um filósofo em busca do entendimento a respeito da vida e de si próprio; e, finalmente, de um autor disposto a compartilhar com os leitores o resultado de tantas e tão maravilhosas descobertas.

______________

Compre aqui: 

Amazon – Saraiva – Travessa – Livraria Cultura

 

 

Deixe um comentário